23 março 2006

A ARTE DE ESCREVER




QUANDO SE TEM DOUTORADO

O dissacarídeo de fórmula C12H22O11, obtido através da fervura e da evaporação de H2O do líquido resultante da prensagem do caule da gramínea Saccharus officinarum Linneu, 1758, isento de qualquer outro tipo de processamento suplementar que elimine suas impurezas, quando apresentado sob a forma geométrica de sólidos de reduzidas dimensões e arestas retilíneas, configurando pirâmides truncadas de base oblonga e pequena altura, uma vez submetido a um toque no órgão do paladar de quem se disponha a um teste organoléptico, impressiona favoravelmente as papilas gustativas, sugerindo impressão sensorial equivalente provocada pelo mesmo dissacarídeo em estado bruto, que ocorre no líquido nutritivo da alta viscosidade, produzindo nos órgãos especiais existentes na Apis mellifera, Linneu, 1758. No entanto, é possível comprovar experimentalmente que esse dissacarídeo, no estado físico-químico descrito e apresentado sob aquela forma geométrica, apresenta considerável resistência a modificar apreciavelmente suas dimensões quando submetido a tensões mecânicas de compressão ao longo do seu eixo em conseqüência da pequena capacidade de deformação que lhe é peculiar


QUANDO SE TEM MESTRADO

A sacarose extraída da cana de açúcar, que ainda não tenha passado pelo processo de purificação e refino, apresentando-se sob a forma de pequenos sólidos tronco-piramidais de base retangular, impressiona agradavelmente o paladar, lembrando a sensação provocada pela mesma sacarose produzida pelas abelhas em um peculiar líquido espesso e nutritivo. Entretanto, não altera suas dimensões lineares ou suas proporções quando submetida a uma tensão axial em conseqüência da aplicação de compressões equivalentes e opostas.


QUANDO SE TEM GRADUAÇÃO

O açúcar, quando ainda não submetido à refinação e, apresentando-se em blocos sólidos de pequenas dimensões e forma tronco-piramidal, tem sabor deleitável da secreção alimentar das abelhas; todavia não muda suas proporções quando sujeito à compressão.


QUANDO SE TEM ENSINO MÉDIO

Açúcar não refinado, sob a forma de pequenos blocos, tem o sabor agradável do mel, porém não muda de forma quando pressionado.


QUANDO SE TEM ENSINO FUNDAMENTAL

Açúcar mascavo em tijolinhos tem o sabor adocicado, mas não é macio ou flexível.


QUANDO NÃO SE TEM ESTUDO

Rapadura é doce, mas não é mole, não!!!

15 março 2006

FILOSOFIA: A PROCURA AMOROSA DA VERDADE


Introdução
A palavra "filosofia" aparece na Grécia do séc. VI a.C. nos escritos de Pitágoras, que não querendo definir-se como "sábio" (em grego: SOPHOS) prefere autodeterminar-se "filos-sophos", ou seja, amante do saber, aquele que busca a sabedoria. No século V a.C., o filósofo Heráclito define melhor o conceito original do vocábulo FILOSOFIA, como "a busca da compreensão da realidade total", em todas as suas formas, de maneira sistemática e disciplinada.
O trabalho filosófico é essencialmente teórico. Mas isto não quer dizer que a Filosofia seja puro logos, pura razão, à margem do mundo; muito menos, que seja um corpo de doutrina acabado, com determinado conteúdo fixo. A Filosofia é um processo sempre dinâmico de apreensão das significações históricas da realidade humana. É a procura amorosa da verdade.
Para Sócrates, uma vida que não é examinada não merece ser vivida. Isto nos diz que o filosofar é preocupar-se com os princípios primeiros de nossa existência e da realidade total. O refletir do ser humano sobre estas questões o tornava "filósofo".
A atitude de "filosofar" nasce, primeiramente, a partir de nossa inquietação, que acende em nós o desejo de ver e conhecer. Em segundo lugar, através da admiração, pois é a condição de onde deriva a capacidade de problematizar, compreender e construir. Isso caracteriza a Filosofia não como posse da verdade, mas como busca humilde, constante e dinâmica da essência da vida. Em terceiro lugar, a Filosofia nasce a partir do sentimento de angústia. O ser que somos se revela naquilo que ele é em sua originalidade: nada, abertura, pura possibilidade. Essa abertura à transcendência, coloca o ser humano diante de si mesmo como projeto, tarefa a realizar.
Para Kant, filósofo alemão do século XVIII, "não há filosofia que se possa aprender; só se pode aprender a filosofar". Isto significa que a Filosofia é sobretudo uma atitude, um pensar permanente. É um conhecimento instituinte, pois questiona o saber instituído.
No mundo e fora dele
O pensar filosófico é um pensar a trama dos conhecimentos do cotidiano. Por isso, a Filosofia se encontra no seio da história. No entanto, está, simultaneamente, mergulhada no mundo e fora dele: eis o paradoxo enfrentado pelo filósofo. O filósofo inicia a caminhada a partir dos problemas da existência, mas precisa afastar-se deles, consciente e criticamente, para melhor compreendê-los, retornando, depois, a fim de propiciar subsídios para as mudanças.
Somos filósofos quando nos colocamos a pensar a realidade circundante, de maneira crítica e responsável. Assim, exercendo-nos neste momento do ato de filosofar, percebemos que a Filosofia tem sido, ao longo da história, fator de crítica e ensaio de alternativas para uma vivência humana mais harmônica e equilibrada. Por isso mesmo, tem incomodado a muitos.
A história registra muitas tentativas em destruí-la, desqualificá-la, negá-la. Os tiranos, os mistificadores, os dominadores, e todos os interessados na alienação e mediocridade do povo preferem uma consciência de rebanho, de fácil manipulação, cativa e obediente, a um questionamento sistemático e profundo sobre a realidade. Não foram poucos os filósofos que pagaram com a vida ou a perda da liberdade a ousada postura de filosofar sobre o seu tempo.
Cabe a nós o exercício do filosofar, isto é, apreender de forma significativa a nossa cultura a ler críticamente a realidade e a ter uma prática (práxis) transformadora do mundo. Assim, a Filosofia não é somente interpretação do mundo, mas o projeto de transformação do ser humano em todos os níveis, do política e ética ao psíquico e espiritual.
A necessidade do filosofar
A Filosofia surge quando se põe em jogo o pensar, tornando-se objeto de reflexão (reflectere = "fazer retroceder", "voltar atrás"). Por isso o filósofo é aquele que conhece a história do pensamento, sua evolução, involução, crise, avanços.
A filosofia não é um conjunto de conhecimentos prontos ou um sistema fechado em si mesmo. Ela é um modo de pensar, uma atitude, uma postura diante do mundo, descobrindo os significados mais profundos. A Filosofia é uma prática de vida que, de forma refletida, busca pensar os acontecimentos do cotidiano além de sua pura aparência.
Assim sendo, ela pode e deve considerar todo e qualquer objeto. Pode considerar a ciência, a religião, a arte, uma história em quadrinhos ou uma canção popular.
A Filosofia, portanto, parte do que existe, critica, questiona, vislumbra possibilidades, faz-nos entrever outros mundo e outros modos de compreender a vida.

Características do Pensamento Filosófico

A Filosofia é uma atividade humana indispensável, uma vez que a estrutura e a essência da realidade não se manifestam direta e indiretamente. Nesse sentido, a Filosofia é uma reflexão sistemática e crítica que tem como objetivo captar a "coisa em si", a estrutura oculta, o modo de ser existente.
Para que a reflexão seja filosófica, é preciso que haja criticidade. Crítica é a arte de julgar e discernir o valor. Criticar é ter o cuidado de, com rigor, saber estabelecer critérios. Além da criticidade, é preciso radicalidade, ou seja, buscar a raiz, a origem, os fundamentos. Negativamente, em sentido contrário, estamos falando em oposição a uma consciência ingênua, que não é radial, sem raízes.
A reflexão filosófica é como a raiz de uma planta que se lança em busca de maior profundidade. Outra característica do pensamento filosófico é a totalidade, ou seja, considera os problemas entre o de um conjunto de fatos e valores relacionados entre si. A reflexão filosófica contextualiza os problemas.
Portanto, a Filosofia é a crítica da ideologia, enquanto forma ilusória de conhecimento que visa a manutenção de privilégios. Olhando refletidamente a etimologia do vocábulo grego que corresponde à verdade (a-létheia, a-letheúein, "desnudar"), vemos que a verdade é por a nu aquilo que está escondido, e ai reside a vocação do filósofo: o desvelamento do que está encoberto pelos costumes, pelo convencional, pelo poder.

24 fevereiro 2006

CARNAVAL

A palavra carnaval nos acompanha desde a Idade Média. Vem do latim, carnelevarium, que significa abstinência de carne. E virou nome de festa porque assinalava as horas (ou os dias) que antecediam o início da Quaresma, tempo que os cristãos reservam para o jejum e a oração. Antes de dar adeus à carne, à alegria e vestir a alma de luto, festejava-se. Enquanto durasse a festa, todas as fronteiras eram abolidas e mesmo os sonhos mais loucos podiam se tornar realidade.

Terça-Feira Gorda, Quarta-Feira de Cinzas

O Carnaval nasce da Quaresma. Esse é o momento de teste, em que os cristãos participam do sofrimento de Cristo e, com a ajuda de orações e de recolhimento, aprontam-se para ressuscitar com Ele, na Páscoa. Nos primeiros tempos do Cristianismo, era durante estes 40 dias que aqueles que iam ser batizados se preparavam. Quando chegasse a Páscoa, seriam mergulhados na água e dela sairiam purificados, como Jesus, do túmulo, para uma vida nova. Os que tivessem muitos pecados, no entanto, teriam que começar a Quaresma fazendo uma penitência pública e desfilariam, cobertos de cinzas, pelas aldeias. Vem daí a nossa Quarta-feira de Cinzas...
Mas nessa nossa história do Carnaval de trás para frente, antes das Cinzas, vem a Terça-feira Gorda. Acontece, em geral, entre 2 de fevereiro e 9 de março, dependendo da data da Páscoa. E desde o século 12 (ou mesmo antes disso, segundo alguns cronistas) é o ponto culminante de uma celebração que começava três ou quatro dias antes. Além de incluir muita comida e bebida (afinal, depois vinha o jejum), a característica mais peculiar dessa festa de Carnaval medieval era o costume de subverter as regras e a rotina da vida. A ordem era virar tudo de pernas para o ar: homens se fingiam de mulher; pobres fantasiavam-se de reis e todos podiam virar bichos, monstros ou seres extraordinários. O clima satírico incluía até solenidades de mentirinha, nas quais as chaves da cidade eram entregues a um conselho de loucos ou de bobos, ou o governo passava por alguns dias para as mãos improváveis das mulheres, por exemplo. Na Idade Média, essas comemorações ficaram conhecidas como Festa dos Inocentes ou Festa dos Loucos.

Roma e as Saturnálias

As origens dessa celebração do caos e da suspensão das regras, porém, são ainda mais antigas. Antes mesmo da era cristã, as Saturnálias eram as festas mais populares entre os romanos. Homenageavam Saturno, o deus das sementes e da agricultura. Durante sete dias Roma fervilhava. O trabalho e os negócios ficavam para depois, os escravos estavam liberados para dizer e fazer o que quisessem e ninguém ligava para certas grosserias que teriam certamente provocado brigas em outros dias. À noite acendiam-se fogueiras para que a festa não acabasse com o dia e todos pudessem sair às ruas para festejar.
É claro que excessos sempre havia. Mas o que irritava mesmo os reis, bispos e poderosos de modo geral era o caráter satírico e irreverente dessas celebrações. Em vão tentaram proibi-las. Modificadas, adaptadas e, eventualmente, deturpadas, as festas carnavalescas se espalharam por toda parte e mantiveram seu maior apelo: só por hoje, vamos reinventar o mundo. E essa possibilidade responde a anseios humanos profundos, que atuam em nós, mesmo quando não nos damos conta disso.

Por trás das máscaras

Festas como as de Carnaval tornam possível e preparam simbolicamente a renovação da vida. Sua função é facilitar o nascimento do "homem novo". Por meio da abolição das normas, dos limites e das individualidades, nós nos perdemos na multidão, para nos encontrar depois. "Somos como uma semente que se decompõe na terra, abandonando sua forma para dar origem a uma nova planta", diz o grande estudioso das religiões e dos mitos, Mircea Eliade em seu livro Tratado de História das Religiões.
A função do Carnaval é justamente trazer à luz este lado nosso que está escondido debaixo da terra. A máscara de carnaval é muito reveladora, ela mostra aquilo que reprimimos no nosso cotidiano. No dia-a-dia, somos todos muito parecidos. Existe uma grande padronização coletiva. O Carnaval favorece uma irrupção de criatividade que tem muito mais a ver com o nosso verdadeiro mundo interior do que as máscaras que usamos todos os dias para funcionar na sociedade.
Essa possibilidade de manifestar aquilo que em geral ocultamos (até de nós mesmos), como a violência, o erotismo e a inveja, promove um grande equilíbrio, tanto individual, quanto coletivo. É por meio dessas simbolizações que elaboramos as nossas diferenças. Alguns estudiosos chegam até a atribuir ao Carnaval a índole pacífica do brasileiro.
E o que garante um desfecho feliz para a festa é que ela tem hora certa para acabar. O Carnaval não dura para sempre. Existem rituais de entrada e de saída para impedir que a festa provoque uma comoção social. Esses rituais assinalam o tempo sagrado, durante o qual a festa acontece. Você pode soltar sua fantasia porque sabe que, quando o dia raiar na Quarta-feira de Cinzas, tudo tem que estar de volta ao seu lugar.

Como encontrar Deus no meio do salão
Muita gente acha que Carnaval é coisa do demônio. Afinal existem os abusos, os quebra-quebras, as drogas. Os excessos sempre marcaram as festas carnavalescas. Mas nem por isso Deus está ausente da festa. "Deus abençoa quem faz retiro, mas acompanha também os seus filhos e filhas que desfilam nas escolas de samba. Mistura-se aos que brincam na Bahia, acompanhando os trios elétricos, e aos que pulam frevo em Olinda, atrás da Pitombeira dos Quatro Cantos", afirma o monge beneditino e prior do Mosteiro da Anunciação, em Goiás, Marcelo Barros. "Deus inverte a seriedade da vida e subverte as convenções do mundo. São Paulo mesmo já dizia que Ele escolhe o que é loucura no mundo para confundir os sábios (1 Cor 1, 27)", continua o monge. Para ele, Deus está longe de ser o sujeito sério e carrancudo que muitos acreditam. E prova o que diz citando a própria Bíblia, onde está escrito que quando Deus criou o mundo havia junto com Ele uma menina que dançava e brincava. O nome dela era Sabedoria.
"Eu estava lá (diz a menina) quando Ele firmou os céus,
quando gravou um círculo ao redor do abismo,
quando adensou a massa das nuvens lá no alto
e quando as fontes do abismo mostravam sua violência;
quando Ele impôs ao mar seu decreto - que as águas não desrespeitam --,
e quando traçou os fundamentos da terra.
Ao seu lado estava eu, qual mestre de obras,
Objeto de suas delícias,
Brincando o tempo todo em sua presença,
Brincando em seu orbe terrestre;
Junto à humanidade acho meus encantos"

20 fevereiro 2006

MATRIX E A FILOSOFIA - II PARTE


Morpheus (o deus dos sonhos e filho de Hipno, na mitologia grega) leva Neo até Oráculo e ela lhe mostra a frase "conhece-te a ti mesmo". Isso é grego também. É de um sujeito que mudou o panorama da história da filosofia e da humanidade: Sócrates (c. 470-399 a. C.), o fundador da ética ou filosofia moral. Por causa dele, as pessoas passaram a se interessar e estudar não apenas a realidade exterior (questões sobre a natureza, os astros etc.), mas também a interior (questões relativas ao ser humano, como política, educação, organização social, comportamento).
Três máximas socráticas ilustram o modo como ele conduziu a sua existência: 1) "Conhece-te a ti mesmo"; 2) "Só sei que nada sei" e 3) "A vida sem reflexão não vale a pena ser vivida".
E daí? (geralmente os filósofos perguntam isso). Bem, daí que, na história de Sócrates, também tem um Oráculo, o Oráculo de Delfos, que disse para ele que o homem mais sábio de todos era... ele mesmo. Todo mundo achava isso, menos o próprio Sócrates. Mais ou menos como acontece com Neo no filme. Quase todo mundo o considera o Escolhido, exceto ele próprio.
Depois, de sua visita ao Oráculo, o ateniense Sócrates passou a abordar as pessoas e a discutir com elas os mais variados assuntos, no intuito de achar alguém que fosse realmente sábio, já que ele achava que nada sabia. Nestes diálogos, sempre colocava em prática as suas máximas: "Só sei que nada sei" e "Conhece-te a ti mesmo". Isto significa que o método socrático, elenchus, pode ser dividido em duas partes: a primeira (destrutiva), com a ironia; e a segunda (construtiva), com a maiêutica. Para Sócrates, a sabedoria consiste primeiro no reconhecimento da própria ignorância - este conhecimento é o passo inicial em busca da sabedoria e envolve o abandono das idéias preconcebidas. Afinal, "as aparências enganam" e não queremos ser enganados por elas, certo?... certo (menos, é claro, para os partidários do Cypher - o traidor no primeiro filme -, que podem retrucar em uníssono: "- Me engana que eu gosto!").
Os diálogos socráticos eram inconclusivos, mas, após os mesmos, acreditava-se estar numa situação melhor do que a de outrora, uma vez que, embora não se soubesse o que era um objeto em questão, sabia-se o que ele não era.
O método maiêutico consiste em extrair idéias por meio de perguntas; a imagem é a de que as idéias já existem na mente "grávida" da pessoa, mas precisam de um "parto" para se tornarem manifestas. Este "poder da mente" é, de certo modo, sugerido no filmes em diversas ocasiões: tanto para propiciar feitos extraordinários quanto para causar a morte do "corpo real" através do virtual.
No fim, Sócrates foi injustamente condenado à morte por ter corrompido - através de idéias inéditas e contestadoras - a juventude, desrespeitar os deuses e confrontar o Estado.
O principal discípulo de Sócrates foi Platão (c. 429-347 a. C.). A passagem mais conhecida de suas obras, a alegoria da caverna (ou mito da caverna), está no livro A república. Agora um pouco de paciência e uma dica para entender o filme a partir desta perspectiva filosófica: ao ler o trecho a seguir, substitua a "caverna" pela realidade virtual de Matrix e o "fugitivo" por Neo e seus companheiros.
Platão exemplifica suas idéias sobre filosofia, política e realidade a partir da dramática alegoria da caverna sobre um grupo de prisioneiros confinados, desde o seu nascimento, no interior de uma caverna. Estão acorrentados de uma tal maneira que só conseguem olhar para frente e tudo que vêem são sombras na parede. Tais sombras são projetadas pela escassa iluminação fornecida por uma fogueira que arde atrás deles. Entre a fogueira e os prisioneiros, há uma passagem ascendente para fora da caverna e através da qual diversas pessoas entram e saem, fazendo com que os prisioneiros vejam variadas formas de sombras e ouçam o eco das vozes dos transeuntes. Em seguida, Platão afirma que um dos prisioneiros, após árdua luta, consegue se libertar das correntes e fugir. Assim, pela primeira vez, o ex-prisioneiro, pode contemplar algo além daquilo ao qual estava habituado. Mais do que meras sombras, ele vê a fogueira, os outros prisioneiros, a passagem ascendente e tudo o mais no interior da caverna. Depois, quando sai e atinge o mundo exterior, além de descobrir a existência de muitas outras coisas, é ofuscado por uma luminosidade ainda maior do que a da fogueira: a do Sol. Atordoado, ele retorna à caverna em busca de refúgio e, também, para relatar o ocorrido aos seus antigos companheiros - estes, por sua vez, não crêem na voz dissonante do fugitivo e se recusam a serem libertados para compartilhar da mesma ‘experiência’. Em contrapartida, os prisioneiros também não conseguem convencer o fugitivo de seu suposto devaneio. Assim, terminam por silenciar, hostilizar e matar o pária fugitivo.
No filme, Morpheus alerta Neo, no "programa de treinamento" (após ele se distrair com "a Mulher de Vermelho" que, num piscar de olhos, dá lugar a um "agente" letal), que qualquer um em Matrix é um agente em potencial.
Agora o restante da interpretação.
Se considerarmos a linguagem metafísica e dualista de Platão (luz/sombra, ciência/opinião, essência/aparência), podemos afirmar que os prisioneiros são a humanidade ignorante - no sentido de não saber, não conhecer. Em Matrix, eles são representados pela humanidade prisioneira das máquinas tiranas.
As correntes que os retém são os hábitos retrógrados e nocivos (os vícios, opostos da virtude) que, se não impede, ao menos dificulta o acesso ao conhecimento. Em Matrix, as correntes também são nossos pseudoprazeres, a rotina e ilusão de realidade, resultado da "simulação neurointerativa".
Uma vez que as sombras são as únicas coisas que os prisioneiros vêem - não possuem outros referenciais - é natural que acreditem nelas como sendo a própria realidade - quando na verdade não são. Em Matrix, se você está sonhando e não percebe, como pode saber que tudo aquilo não é realidade? "- Acorde, Neo. (...) Siga o coelho branco".
O fugitivo representa o filósofo, aquele que tem acesso à luz - ao conhecimento. Em Matrix: é o que desconfia que está vivendo uma ilusão, como Neo.
O percurso até o conhecimento é ascendente e íngreme, assim como a passagem que une o interior ao exterior da caverna. Da mesma forma que a visão necessita de tempo para, de forma gradativa, assimilar as mudanças de tons claros e escuros a que são submetidos os objetos quando passamos das luzes às trevas e vice-versa; a compreensão e a aprendizagem demandam tempo, requerem um período para adaptação. Em Matrix recorde o difícil processo de readaptação pela qual Neo e todos os outros antes dele tiveram de se submeter.
A missão do filósofo (e de Neo ou de qualquer um que se livre do controle de Matrix, conforme esta interpretação) é conhecer a verdadeira realidade (sair da Matrix), regressar à caverna - lugar obscuro, pleno de crenças, aparências e superstições - (voltar à Matrix) e instruir os demais (em Matrix: libertar todos). Tarefa nada fácil, já que as idéias retrógradas são predominantes e costumam condenar, de modo prévio, todo ineditismo (em Matrix: não resista, esqueça, se submeta para não precisar ser eliminado).
Parafraseando Platão, podermos dizer que "a realidade não é o que alguns apregoam que ela é". A realidade é virtual, é Matrix.
Em virtude da extensão do legado platônico, muitas de suas idéias não foram aqui abordadas; todavia, faz-se necessária uma pequena e lacunar menção sobre duas noções importantes: a teoria das formas ou idéias e da doutrina da reminiscência.
Para Platão, no diálogo Mênon, o início do processo de conhecimento é justificado pela doutrina da reminiscência ou anamnese, uma precursora solução inatista que sustenta a idéia segundo a qual existe um conhecimento prévio, resultante da contemplação das formas perfeitas e imutáveis pela alma imortal antes da reencarnação. Portanto, a partir deste exemplo, podemos notar que é através da teoria das formas ou idéias e da doutrina da reminiscência, que Platão defende que o conhecimento é a rememoração. Já no filme, na barganha que Cypher faz com o agente Smith, ele exige entre outras coisas, esquecer tudo, não se lembrar de nada.
Para finalizar, um pouco de heresia filosófica: o "momento aristotélico" do filme fica por conta das máquinas. Calma, eu explico.
Antes de seguir suas próprias idéias Aristóteles foi o mais importante discípulo de Platão. Sistematizador da lógica, ele valorizava extremamente o conhecimento empírico e as ciências naturais. Classificava tudo metodicamente, principalmente quando se tratava de suas investigações no campo da biologia. Se alguém aí falou "Agente Smith" e "Inteligência Artificial", acertou.
Vamos recordar. No universo do filme Matrix, por volta de 2199, a Terra fica devastada como resultado de uma guerra ocorrida entre humanos e máquinas. A humanidade não consegue vencer a Inteligência Artificial, "uma consciência singular que gerou uma raça inteira de máquinas" (segundo relato de Morpheus), bloqueando a energia solar da qual dependiam as máquinas. Ironicamente, os seres humanos derrotados tornam-se baterias de "bioeletricidade" e acabam substituindo a função do Sol, pois, através de uma "espécie de fusão", são usados para fornecer a energia de que elas precisam.
Na cena em que Morpheus encontra-se prisioneiro do Agente Smith, este revela que, ao tentar classificar a raça humana, fez uma descoberta surpreendente: ele sustenta que nós, seres humanos, não somos mamíferos, porque não entramos em equilíbrio com o meio ambiente. Ao contrário dos mamíferos, nós nos mudamos para uma área e nos multiplicamos até consumirmos todos os recursos naturais para depois, mudar novamente para outra. Segundo o Agente Smith, o "outro organismo neste planeta que segue o mesmo padrão" é um "vírus".
Conforme especulações e notícias divulgadas recentemente sobre a continuação - Matrix Reloaded - teremos oportunidade de nos confrontarmos de novo com os golpes, a retórica e a lógica do agente Smith.

14 fevereiro 2006

MATRIX E A FILOSOFIA



O que é Matrix? Controle. A Matrix é um mundo de sonhos gerado por computador... feito para nos controlar..."

[Trecho da revelação feita por Morpheus a Neo]
Em 1999, o cinema americano produziu Matrix, um filme, originalmente subestimado, que arregimentou milhares de admiradores no mundo todo e logo se transformou em uma referência para outras produções cinematográficas.
O fenômeno Matrix pode ser parcialmente compreendido se levarmos em consideração a profusão de influências e temas que aparecem, direta ou indiretamente, no roteiro e nas imagens do filme. Aí vão alguns exemplos: distopia, esperança, filosofia, 1984 de George Orwell, artes marciais, cibercultura, agentes secretos e teorias conspirativas, romance, Alice no país das maravilhas de Lewis Carroll, messianismo (crença na vinda do Salvador: Jesus, Messias, Buda, Rei Arthur), mitologia grega e céltica, Admirável mundo novo de Aldous Huxley, efeitos especiais, nova estética, super-heroística (óculos escuros, roupas pretas de couro e sobretudos substituem, respectivamente, máscaras, uniformes colantes coloridos e capas), ficção científica e assim por diante. Como não dá para falar de todas estas coisas em poucas linhas, vamos especificar: faremos uma rápida comparação entre o filme Matrix e a filosofia grega de Sócrates e Platão.
Para começar, responda rápido: se o contrário de real é irreal, então qual é o contrário de virtual?
Se está se perguntando qual é a relação desta questão com o filme e a filosofia, respondo: tudo.
O filme praticamente começa com a pergunta "o que é Matrix?". Alguém aí se lembra do diálogo entre Trinity e Neo? Então... ela lhe diz: "- É a pergunta que nos impulsiona, Neo. Foi a pergunta que te trouxe aqui. Você conhece a pergunta assim como eu". E ele: "- O que é a Matrix?". Em seguida, a jovem conclui: "- Sim, a resposta está aí. Ela está à sua procura. E te encontrará se você desejar".
Mas e a relação desta passagem com a filosofia? Bem, a filosofia ocidental (o pensamento crítico) surgiu na Grécia Antiga, por volta do século VI a. C., como uma alternativa ao mito (o pensamento ingênuo); ela começa através da pergunta "o que é a realidade"?. De modo geral, naquela época, os filósofos pré-socráticos deram duas explicações. A escola jônica, que se importava mais com a observação da natureza (physis) - daí o surgimento da física e da cosmologia - respondeu que o real é a physis; já a escola eleática, que se importava mais com a abstração - daí o surgimento da metafísica e da ontologia - respondeu que o real é o ser (ontos). Destas considerações, aqui expostas de modo breve e lacunar, originaram as investigações filosófico-científicas posteriores.

PENSAR DÓI?

Olá.
Li a pouco uma matéria do jornalista e escritor Luciano Pires, e gostaria de fazer minha esta letras.


"Tenho encontrado com freqüência pessoas que estão perdendo o hábito de pensar. Muitos são jovens que parecem ter os cérebros desligados ou no piloto automático. Chega a ser assustador.
Pensei a respeito. Levamos uma vida ocupadíssima. Temos pessoas com as quais lidar... Decisões a tomar... Estratégias a desenvolver e monitorar... Planos a implementar... Conflitos... Negociações... Acordos... Valores a trocar... É preciso pensar para fazer acontecer.
Fui pesquisar sobre esse ato saudável que é o pensar e encontrei algumas definições interessantes. Uma delas diz que o propósito do pensar é arranjar o mundo em nossa mente de forma a poder aplicar a emoção efetivamente. Por mais racionais que sejamos no final é sempre a emoção que faz as escolhas e toma as decisões. A gente examina os dados técnicos, compara os atributos, chora o preço, olha pra força do motor, pergunta sobre o sistema de suspensão mas, no final, escolhe o carro que quer comprar pela emoção. É o desenho do carro, a sensação que ele traz, a impressão que causa, que acabam determinando a escolha. Pura emoção.
É assim também com o livro que vamos ler, a pessoa com quem vamos casar e até mesmo o fornecedor que vamos contratar. Por mais fria que seja a análise, no fundo é a emoção que faz a diferença.
É por isso que as empresas hoje em dia gastam dezenas, centenas, milhões de reais em sistemas e processos que tenta recriar aquilo que meu avô sabia em 1925: chamar o cliente pelo nome, saber do que ele gosta, avisar quando a mercadoria certa chegou... Hoje chamam isso de CRM - customer relationship management, não é chique? Custa um monte de dinheiro. Tentam fazer com que os computadores atuem sobre a emoção das pessoas.
Não é o máximo quando chega o cartão da loja comemorando seu aniversário?Quando você liga para aquele 0800 e a pessoa pergunta sobre seu time do coração?Pois saiba que são os truques do marketing que tentam fazer com que vocêoriente sua emoção para escolher aquela empresa.
E quando a gente não pensa, é isso mesmo que acaba acontecendo. Deixamosque vendedores competentes manipulem nossas emoções e consigam que façamoso que eles querem.
É assim que hoje elegemos políticos...
Quando começamos a pensar, a refletir, deixamos de ser uma manada de bovinosresignados e passamos a agir como gente que tem vontades. Gente que observa,julga e toma suas escolhas conscientes. Gente que arranja o mundo em suasmentes para aplicar a emoção de forma efetiva.
Pense nisso.