24 fevereiro 2006

CARNAVAL

A palavra carnaval nos acompanha desde a Idade Média. Vem do latim, carnelevarium, que significa abstinência de carne. E virou nome de festa porque assinalava as horas (ou os dias) que antecediam o início da Quaresma, tempo que os cristãos reservam para o jejum e a oração. Antes de dar adeus à carne, à alegria e vestir a alma de luto, festejava-se. Enquanto durasse a festa, todas as fronteiras eram abolidas e mesmo os sonhos mais loucos podiam se tornar realidade.

Terça-Feira Gorda, Quarta-Feira de Cinzas

O Carnaval nasce da Quaresma. Esse é o momento de teste, em que os cristãos participam do sofrimento de Cristo e, com a ajuda de orações e de recolhimento, aprontam-se para ressuscitar com Ele, na Páscoa. Nos primeiros tempos do Cristianismo, era durante estes 40 dias que aqueles que iam ser batizados se preparavam. Quando chegasse a Páscoa, seriam mergulhados na água e dela sairiam purificados, como Jesus, do túmulo, para uma vida nova. Os que tivessem muitos pecados, no entanto, teriam que começar a Quaresma fazendo uma penitência pública e desfilariam, cobertos de cinzas, pelas aldeias. Vem daí a nossa Quarta-feira de Cinzas...
Mas nessa nossa história do Carnaval de trás para frente, antes das Cinzas, vem a Terça-feira Gorda. Acontece, em geral, entre 2 de fevereiro e 9 de março, dependendo da data da Páscoa. E desde o século 12 (ou mesmo antes disso, segundo alguns cronistas) é o ponto culminante de uma celebração que começava três ou quatro dias antes. Além de incluir muita comida e bebida (afinal, depois vinha o jejum), a característica mais peculiar dessa festa de Carnaval medieval era o costume de subverter as regras e a rotina da vida. A ordem era virar tudo de pernas para o ar: homens se fingiam de mulher; pobres fantasiavam-se de reis e todos podiam virar bichos, monstros ou seres extraordinários. O clima satírico incluía até solenidades de mentirinha, nas quais as chaves da cidade eram entregues a um conselho de loucos ou de bobos, ou o governo passava por alguns dias para as mãos improváveis das mulheres, por exemplo. Na Idade Média, essas comemorações ficaram conhecidas como Festa dos Inocentes ou Festa dos Loucos.

Roma e as Saturnálias

As origens dessa celebração do caos e da suspensão das regras, porém, são ainda mais antigas. Antes mesmo da era cristã, as Saturnálias eram as festas mais populares entre os romanos. Homenageavam Saturno, o deus das sementes e da agricultura. Durante sete dias Roma fervilhava. O trabalho e os negócios ficavam para depois, os escravos estavam liberados para dizer e fazer o que quisessem e ninguém ligava para certas grosserias que teriam certamente provocado brigas em outros dias. À noite acendiam-se fogueiras para que a festa não acabasse com o dia e todos pudessem sair às ruas para festejar.
É claro que excessos sempre havia. Mas o que irritava mesmo os reis, bispos e poderosos de modo geral era o caráter satírico e irreverente dessas celebrações. Em vão tentaram proibi-las. Modificadas, adaptadas e, eventualmente, deturpadas, as festas carnavalescas se espalharam por toda parte e mantiveram seu maior apelo: só por hoje, vamos reinventar o mundo. E essa possibilidade responde a anseios humanos profundos, que atuam em nós, mesmo quando não nos damos conta disso.

Por trás das máscaras

Festas como as de Carnaval tornam possível e preparam simbolicamente a renovação da vida. Sua função é facilitar o nascimento do "homem novo". Por meio da abolição das normas, dos limites e das individualidades, nós nos perdemos na multidão, para nos encontrar depois. "Somos como uma semente que se decompõe na terra, abandonando sua forma para dar origem a uma nova planta", diz o grande estudioso das religiões e dos mitos, Mircea Eliade em seu livro Tratado de História das Religiões.
A função do Carnaval é justamente trazer à luz este lado nosso que está escondido debaixo da terra. A máscara de carnaval é muito reveladora, ela mostra aquilo que reprimimos no nosso cotidiano. No dia-a-dia, somos todos muito parecidos. Existe uma grande padronização coletiva. O Carnaval favorece uma irrupção de criatividade que tem muito mais a ver com o nosso verdadeiro mundo interior do que as máscaras que usamos todos os dias para funcionar na sociedade.
Essa possibilidade de manifestar aquilo que em geral ocultamos (até de nós mesmos), como a violência, o erotismo e a inveja, promove um grande equilíbrio, tanto individual, quanto coletivo. É por meio dessas simbolizações que elaboramos as nossas diferenças. Alguns estudiosos chegam até a atribuir ao Carnaval a índole pacífica do brasileiro.
E o que garante um desfecho feliz para a festa é que ela tem hora certa para acabar. O Carnaval não dura para sempre. Existem rituais de entrada e de saída para impedir que a festa provoque uma comoção social. Esses rituais assinalam o tempo sagrado, durante o qual a festa acontece. Você pode soltar sua fantasia porque sabe que, quando o dia raiar na Quarta-feira de Cinzas, tudo tem que estar de volta ao seu lugar.

Como encontrar Deus no meio do salão
Muita gente acha que Carnaval é coisa do demônio. Afinal existem os abusos, os quebra-quebras, as drogas. Os excessos sempre marcaram as festas carnavalescas. Mas nem por isso Deus está ausente da festa. "Deus abençoa quem faz retiro, mas acompanha também os seus filhos e filhas que desfilam nas escolas de samba. Mistura-se aos que brincam na Bahia, acompanhando os trios elétricos, e aos que pulam frevo em Olinda, atrás da Pitombeira dos Quatro Cantos", afirma o monge beneditino e prior do Mosteiro da Anunciação, em Goiás, Marcelo Barros. "Deus inverte a seriedade da vida e subverte as convenções do mundo. São Paulo mesmo já dizia que Ele escolhe o que é loucura no mundo para confundir os sábios (1 Cor 1, 27)", continua o monge. Para ele, Deus está longe de ser o sujeito sério e carrancudo que muitos acreditam. E prova o que diz citando a própria Bíblia, onde está escrito que quando Deus criou o mundo havia junto com Ele uma menina que dançava e brincava. O nome dela era Sabedoria.
"Eu estava lá (diz a menina) quando Ele firmou os céus,
quando gravou um círculo ao redor do abismo,
quando adensou a massa das nuvens lá no alto
e quando as fontes do abismo mostravam sua violência;
quando Ele impôs ao mar seu decreto - que as águas não desrespeitam --,
e quando traçou os fundamentos da terra.
Ao seu lado estava eu, qual mestre de obras,
Objeto de suas delícias,
Brincando o tempo todo em sua presença,
Brincando em seu orbe terrestre;
Junto à humanidade acho meus encantos"

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